Antirracismo

Ana Carbatti e os ensinamentos que “Ninguém Sabe Meu Nome” deixa de legado ao mundo

Espetáculo apresentado e idealizado pela atriz quebra a quarta parede e questiona o público sobre a realidade e o preconceito herdado pelos nossos colonizadores em 1500

Publicado em 21/07/2022 11:48
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Nascendo como um protesto contra um problema sério que foi plantado no Brasil no ano de 1500 durante a colonização do Brasil por Portugal, o espetáculo “Ninguém Sabe Meu Nome” protagonizado e idealizado pela atriz Ana Carbatti, nos promove um verdadeiro mergulho por reflexão sobre o porquê de esse preconceito racial existir.

O espetáculo que ficou em cartaz do final de junho até o início desse mês de julho, mostrou a atriz em um monólogo onde através da quebra da quarta parede, indaga o público com uma chuva de questionamentos que faz com que repensarmos as nossas realidades seja uma crucial para avançarmos no mundo. O enredo do projeto reflete os códigos racistas tácitos da sociedade, os impasses e impactos que ele causa. Durante toda a apresentação, a personagem de Ana vive um dos diálogos mais difíceis que uma mãe negra pode ter – Esconder a realidade cruel do mundo para conseguir manter ainda um pouco de inocência na vida de seu filho ou expor para ele todos os preconceitos que possam existir contra ele no mundo.

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Esses e outros aspectos da obra faz com que “Ninguém Sabe Meu Nome” seja como uma aula para todos nós que vivemos na sociedade. Atualmente integrando o projeto “Redemunho” no Teatro Firjan SESI Centro (Avenida Graça Aranha, 1 – RJ), Ana Carbatti já confirmou outras duas curtas temporadas de “Ninguém Sabe Meu Nome” nas cidades de Rio de Janeiro e Niterói que deverão acontecer agora em agosto. Confira a entrevista!

Encerando agora mais uma temporada do espetáculo “Ninguém Sabe Meu Nome”, a obra abordou questões bastante delicadas que tocam nos assuntos de racismo e como esses códigos impactam na sociedade e que infelizmente, nem todos ainda tem esse consentimento na pele. Como você avalia o significado desse projeto na sua carreira e a responsabilidade de representar essa realidade nos palcos?

Mesmo tendo certeza da relevância deste projeto no contexto atual, eu tinha uma pequena insegurança a respeito da sua recepção e repercussão: não é um tema fácil e as opções dramatúrgicas são bem contundentes. A escolha de fazer um monólogo nasceu da necessidade artística de abrir novos caminhos através de desafios ainda que ainda não havia vivido; estar sozinha em cena, além de ter um significado marcante na proposta do espetáculo, foi o desafio que eu procurava nesse momento da carreira. Foi surpreendente pra mim a resposta do público, a receptividade e o impacto! O público, de uma maneira geral, usava a palavra “necessário” para definir essa proposta cênica. Essa resposta me dá muita satisfação! É muito gratificante perceber que nosso ofício pode ter esse tipo de alcance.

O enredo do projeto em si, além de todo o contexto que a mensagem nos traz, ele se guia por um dilema bastante delicado sobre a decisão de uma mãe em amenizar a realidade do mundo para que seu filho cresça com um pouco mais de inocência ou prepará-lo para uma realidade cruel. Durante o seu tempo interpretando essa mãe, você conseguiu imaginar realmente como seria esse dilema na sua vida?

Sem dúvida! E não só isso: o projeto, em si, surge desses questionamentos no âmbito pessoal. Sou irmã, sobrinha, prima e mãe de homens pretos. Esta é uma realidade que se precipita desde muito cedo para nós.

Ana Carbatti (Foto: Daniel Barboza)

Além das agressões físicas e verbais, o racismo é um fenômeno que não se restringe a uma determinada faixa etária, e assim prejudica tanto o adulto que por mais que o preconceito doa, ainda tem mais experiência de vida, e as crianças e adolescentes que estão passando por isso em momento onde não se há tanta vivência. Você acredita que esse projeto possa também estar ajudando os jovens a tentarem lidar melhor com essa infeliz situação ou mesmo fazer com que pessoas de outras etnias possam abrir mais seus pensamentos?

Os jovens negros não precisam, nem devem, se ocupar em aprender a lidar com essas situações! Os jovens negros precisam, e devem, se ocupar com sua formação, com o estabelecimento de um posicionamento profissional, social e político dentro da sociedade, como todo e qualquer jovem desse país, independente de origem racial. Como digo na peça, citando uma fala de James Baldwin (ativista dos direitos civis Estadunidenses), “o ‘problema do negro’ não é um problema do negro”!

Quem deve se ocupar em lidar com essas situações são as pessoas que criaram e seguem provocando esse confronto: aqueles que veem os negros como um problema. Eu espero que meu espetáculo possa ser útil, sim, para fortalecer os jovens negros mas, principalmente, para edificar o antirracismo, através da debate sobre os impactos irreversíveis que o racismo tem provocado nos últimos 500 anos…

Durante um determinado momento do espetáculo, a personagem da mãe passa por alguns questionamentos em relação à plateia, e questiona se as pessoas ainda acham que a perseguição dos seguranças nas lojas, o preto ter que subir pelo elevador de serviço e outras questões se tratarem de paranoia. Como você, Ana Carbatti, responderia a essas perguntas?

São perguntas difíceis de responder por que não há respostas simples para elas. No espetáculo, a plateia, nesse momento da peça, já bastante envolvida, tenta responder com um sim ou um não. Mas nós sabemos que as respostas são labirínticas porque são, no fundo, provocações. São questões que carregam os 400 anos da escravidão brasileira, que carregam um país estruturado economicamente na desigualdade racial/social, que carregam referências eurocêntricas… então é complicado encontrar essas respostas. Mais do que respondê-las, eu gostaria que não tivéssemos que fazê-las.

Ana Carbatti (Foto: Daniel Barboza)

Através do que já estudamos a respeito da história do Brasil, que o racismo acabou sendo uma herança da colonização portuguesa, onde os índios brasileiros não se viam como um povo uno e as tribos nutriam animosidades entre si, gerando guerras constantes, e por assim foi passando por momentos como a escravidão, e chegando até os dias de hoje. Sendo ele uma coisa bastante histórica e ultrapassada tanto no tempo como em evolução humana em comparação com outros aspectos, porque acha que esse sentimento de ódio e desprezo tem se mantido até os dias de hoje?

A história oficial do Brasil, a que aprendemos na escola até os dias de hoje, é bastante criticável no que concerne às definições dos povos originários e dos africanos escravizados. A escravidão brasileira foi um projeto exclusivamente criado pelo colonizador, e é um equívoco que suas causas sejam justificadas pelos modos de vida dos subjugados. Esse sentimento de ódio que se mantém até hoje é o resultado de um muito bem sucedido projeto de Estado na construção de “teorias” compartilhadas e propagadas pelas principais instituições de poder e comunicação ao longo da construção do nosso país. As ideias coloniais de “hierarquia das raças”, “inexistência de ‘alma’, “superioridade branca” foram orquestradamente enraizadas de modo a garantir a manutenção da hegemonia branca”.

A abolição nunca se deu verdadeiramente no Brasil. Pelo menos não, ainda. Recentemente, vi no noticiário um medico branco sendo preso em flagrante por ter cometido um crime qualificado como hediondo e levado pelos policiais sem algemas, como um cidadão que merece o respeito de se defender de uma acusação. Nunca vi, em 52 anos de vida, um homem negro ser conduzido da mesma forma, em situação semelhante. Isso, pra mim, é uma das tantas evidências de como as políticas de subjugação e intimidação dos negros há mais de 500 anos tem servido ao Estado para manter a hegemonia branca.

Além de ter protagonizado o espetáculo, você também foi uma das idealizadoras e responsáveis pelo texto. Como aconteceu o processo de criação desse projeto e qual considera ser a importância de utilizarmos a cultura como forma de comunicação para conscientizarmos o público sobre esses assuntos que são tão importantes para a nossa convivência em sociedade?

Essa é uma das minhas maiores alegrias como artista. Tenho muito orgulho dos projetos de teatro que venho produzindo nos últimos 10 anos, perseguindo uma linha de trabalhos fundados na literatura como fonte de entretenimento. Quando a gente cria um projeto não tem a pretensão explicita e inicial de conscientização e instrução da plateia; mas, é claro, que dentre os objetivos secundários, há sempre a tentativa de reunir meios de sensibilizar o público sobre as matérias inerentes à nossa sociedade. É fundamental que o artista tenha esse papel, também. A cultura está em tudo que somos como sociedade, portanto, nada mais justo que sejamos os artistas, agentes de transformações através do nosso trabalho.

“Ninguém Sabe Meu Nome” teve um processo longo e trabalhoso porque envolveu muita leitura e discussões. E o resultado nos deixou muito contentes.

Aproveito essa resposta para te informar, e a seus leitores, que estamos trabalhando para retornar em agosto com “Ninguém Sabe Meu Nome” para duas mega curtíssimas temporadas em Niterói e no Rio. Enquanto isso, estou em cartaz com o espetáculo “Redemunho”, baseado nos contos de Ronaldo Correia de Brito, no Teatro Firjan Sesi Centro (Graça Aranha, 1 – Centro), às 2as e 3as, às 19h, mas só até dia 2 de Agosto. Estou na companhia dos atores Alexandre Dantas e Claudia Ventura.

Ana Carbatti (Foto: Daniel Barboza)

Em sua opinião, do jeito que o mundo está caminhando hoje, tanto na própria sociedade como na educação e na política, o racismo ainda tem cura no Brasil? Qual é o elemento que falta para o mundo conseguir tornar a “diferença” como algo “comum”?

Cura é o processo de recuperação ou melhoria de algo. O racismo não carece de cura, mas de políticas para sua supressão. Precisa do braço forte da sociedade na realização de que o ato é inconstitucional e bárbaro. Enquanto a população priviligiada do país não olhar para isso, com os olhos abertos e os ouvidos em escuta, e não tomar pra si a responsabilidade pela brutalidade que comete diariamente através do racismo estrutural e institucional, não conseguiremos nos reorientar.

É uma questão, mesmo, de mudar o jeito de pensar, mas, principalmente, de agir num novo sistema. A diferença não precisa ser comum, precisa ser legitimada. Se eu acredito que isso pode acontecer? Sem dúvida. Até porque, se não acreditasse o que me restaria? Que mundo eu deixaria para meu filho?

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