Toca do Coelho

Com mistério e criatividade, “O Coelho” de André L. Nascimento busca auxiliar leitores a lidarem com depressão

Obra inspirada no clássico de Lewis Carroll traz uma nova versão de Alice em São Paulo e mostra reflexões a respeito da vida do autor e de suas observações sobre o mundo ao redor

Publicado em 19/08/2022 20:06
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A avó de Alice sempre a avisou que a curiosidade pode trazer risco e que ela nunca deveria seguir o coelho branco. Cansada de uma vida patética, a única alternativa encontrada pela jovem foi cobiçar uma boa dose de aventura. E, como em um conto de fadas, esse desejo se torna realidade.

No lançamento O Coelho, o escritor mineiro André L. Nascimento apresenta ao leitor um universo fantástico e ao mesmo tempo macabro, típico do subgênero dark fantasy. No enredo, todos os elementos mágicos de Alice no País das Maravilhas são, na verdade, seres monstruosos com um único objetivo em comum: matar a Alice real.

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Quando criança, a protagonista era curiosa e cheia de vontade de descobrir o mundo. No entanto, após perder a avó de um jeito trágico e misterioso, ela deixa todo seu desejo de viver para traz e, mesmo infeliz, aceita seu destino: viver com a mãe problemática, sem amigos e alegrias.

O cenário, ambientado principalmente na cidade de São Paulo, vira de cabeça para baixo quando a jovem tem seu livro de Lewis Carroll roubado por um duende e esbarra em um homem alto e musculoso. Alice logo identifica que aquele era o coelho da sua história.

A partir desse momento surgem lobisomens encoleirados montados por homens com corpo de bode, vampiros subterrâneos, unicórnios que se alimentam de humanos, fadas carnívoras, sereias, entre outros seres mitológicos. Ao longo da narrativa, a menina descobre ser uma doppelgänger e assim como ela, existem muitas outras Alices em busca de um lugar no mundo.

Fascinado pelo clássico de Lewis Carroll desde a infância, André Nascimento constrói uma trama cheia de reviravoltas em uma corrida inacreditável de Alice contra o tempo, seu próprio coração e todos os monstros existentes. Confira a entrevista!

O Coelho era um “apelido” para seu marido. A obra, de alguma forma, tem um pouco sobre você, seu marido e sua história? Como surgiu a ideia de realizar essa nova versão da obra de Lewis Carroll?

O Coelho é todo diluído em minha história, refletindo minha adolescência que, certamente se assemelha à adolescência de muita gente, por isso o contato é imediato entre obra e leitor. A Alice brasileira tem problemas com a mãe, eu não tive mãe e, enquanto crescia, muita coisa destruía minha autoestima e me fazia duvidar de mim mesmo. Ser gay, crescer em uma fazenda e rodeado por machismo não é das melhores experiências, ainda mais sem uma mãe para te proteger. Muito disso se espelhou na minha Alice. Quando conheci meu atual marido, estava solteiro há pouco tempo, mas ainda amava a outra pessoa. Sentia-me Alice, seguindo o coelho e entrando em uma aventura muito louca, mesmo quando sabia que não devia. E lá fui eu, pelo buraco outra vez.

A ideia sempre esteve comigo, desde criança. Minha paixão por Alice no País das Maravilhas começa já desde pequenininho e tendo minhas primeiras percepções de que a vida ia ser um pouco dura comigo, pois já me notava homoafetivo e que não pertencia àquele ambiente cheio de homens que tinham que provar sua masculinidade o tempo todo. O primeiro filho homem do fazendeiro que sonhava que ia tocar seus negócios, mas eu queria cantar, desenhar e criar histórias. O estranho no ninho.

Quando comecei a escrever minhas histórias, Alice sempre me cutucava no fundo da memória.  Quando sai de casa e passei a me virar, juntei uma grana e fiz um intercâmbio em Londres. Na volta, lendo um exemplar do livro original, passei a imaginar como seria uma Alice no Brasil e se tudo aquilo do livro fosse distorcido, enxergado com olhos um pouco mais nefastos, com uma boa dose de mistério e susto. Então, O Coelho nasceu.

André L. Nascimento (Foto: Reprodução/Instagram)

No post do Instagram está que o livro foi reescrito mais de 6 vezes. Quanto tempo de produção até chegar à história final? Poderia dizer como eram as ideias iniciais? Pensa em fazer alguma Bienal aqui no Rio de Janeiro?

O processo de escrita durou cerca de sete meses. Contudo, as revisões é que dão trabalho, e olha que sempre ainda escapa alguma coisa para o desespero da gente e só nas novas tiragens para corrigir. O contrato com a editora foi assinado no começo da pandemia, mas houve um bocado de tempo antes, procurando a melhor casa para O Coelho. Com a pandemia, decidi esperar, não quis lançar nada naquele período triste, não combinava com a alegria que esperava colher. No total, mais de seis anos se passaram até tudo se concretizar.

As ideias iniciais não mudaram muito. Modéstia à parte, tenho uma cabeça bem adubada, então, sento no computador e deixo fluir. Depois, nas revisões, vou podando, emendando, arrancando ou acrescentando o tempero que falta. Mas a ideia original ficou lá, firme e forte. Quando o material caiu nas mãos da editora, foram pedidas algumas mudanças sobre expressões que poderiam soar ofensivas, descrições de algumas personagens e fugir de alguns estereótipos. Amei esse cuidado que a Cabana Vermelha tem com o público, em como é progressiva, inclusiva e cuida para que todos se sintam bem e representados com a leitura, e o quanto aprendi nesse processo, é claro.

Do que depender de mim, estou em todas as bienais, é claro! Torcendo para Cabana Vermelha me colocar debaixo do braço e levar para lá, assim como foi em São Paulo, um sonho que vou dever para sempre a eles.

André L. Nascimento (Foto: Reprodução/Instagram)

Sem dúvidas, o clássico de “Alice no País das Maravilhas”, é uma obra que nos desperta bastantes momentos reflexivos, tanto em suas famosas frases, como no contexto de seus personagens, e que nos fazem refletir sobre aspectos de nossas vidas. Essa obra teve certo marco na sua vida? Porque Alice, e qual considera ser a sua importância para a literatura global?

Alice me salvou de ser um grande candidato à depressão ou suicídio. Vamos falar sério? Infelizmente, entre nós, homossexuais, existe uma taxa gigantesca de adolescentes que tiram a vida por se sentirem culpados por não serem o que os pais idealizaram. O menino sem mãe, chamado de viadinho na escola todos os dias, empurrado, cutucado na hora do recreio ou a piada preferida dos primos, sempre com a certeza de que era a vergonha da família. Qual outro destino eu teria?

Quando assisti ao filme de desenho da Disney, aquilo foi um encanto só! Aquele mundo mágico, criaturas que propunham desafios (Quem é você, Alice? / Quem é você, André?), aquela ideia de que, se Alice não era feliz com o que tinha e se sentia deslocada, ela podia criar seu próprio mundo, seu destino… Aquilo foi a chave inicial para eu criar meu mundo de fantasia, entender que, tudo bem não ser o que eles queriam, mas isso não pode roubar seus sonhos, não pode tirar seu direito de ser o que você quiser e ser feliz, é injusto. Foi assim que entendi que era demais para eles entenderem, mas cabia a mim construir meu caminho.

Que fique claro: não tive a pior família do planeta. Existiu sim o preconceito (ainda existe!), a falta de entendimento, e foi preciso muita luta para hoje me respeitarem como o homem que sou, mas quando se é criança, é difícil escutarem sua voz, mesmo quando você grita. Alice me ajudou a segurar firme e sonhar, porque sonhos são a única luz na escuridão.

Acredito que Alice carrega essa mensagem não apenas para mim, mas para o planeta inteiro. Ela encanta, enche crianças de sonhos e ajuda você a olhar para dentro de si mesmo, se questionar, investigar e se encontrar, mas seu verdadeiro eu, aquele que te faz feliz. Entender que sempre vamos estar em transformação. “Hoje, quando acordei, estava de um jeito, mas agora já não sou mais eu…” É assim que tem que ser; são justamente estas pessoas que não mudam que têm nos matado há anos, a nós, nossos irmãos, mulheres, pretos, nordestinos, aqueles nas religiões africanas…

André L. Nascimento (Foto: Reprodução/Instagram)

Um dos fatos que mais chamou atenção em sua obra foi o ambiente onde foi contada – enquanto no clássico, os campos ingleses servem de ambientação, na obra brasileira escrita por você, foi ambientada em São Paulo. Um estado completamente urbano, e que com um pouco de magia, acabou transportando o autor diretamente para um novo país das maravilhas, por assim dizer. Como foi o processo de mesclar esses ambientes completamente distintos e os desafios em criar esse novo mundo fantasioso?

Uma das lições mais importantes que todo escritor deve aprender é: não escreva sobre o que você não sabe. Por ter familiares e amigos em SP, sempre estou tendo algum contado e perambulando pela cidade. Acabou sendo natural minha escolha, pois não poderia falar bem sobre outra localidade. Queria um ambiente urbano, um caos, um paradoxo que combinasse com a aura da história, o mágico, mas sombrio, o encantador, mas assustador. Acredito que SP preenche bem todas essas lacunas.  Uma garota conturbada como a Alice brasileira precisava estar cercada pela loucura e o cimento de uma cidade louca. É exteriorização de seu próprio interior e também um dos gatilhos para querer tanto viver uma aventura, fugir daquela realidade.

Tenho que ser honesto aqui e dar as devidas honras ao mestre dos mestres no Brasil para mim: André Vianco. Eu o lia desde garoto e tive a oportunidade incrível de participar de seu curso de escrita, onde aprendi que ninguém suporta mais escritor brasileiro que “americaniza” tudo. Amante de viagens e cultura, eu sempre estou em busca de cenários de tirar o fôlego e achava lindos os cânions do sul. Neve também sempre foi um sonho, desde criança e, quando estava terminando a história, pude viajar para o Chile, onde a história termina. Então, foi tudo um encaixe de peças natural.

O desafio era encaixar as personagens ao cenário, como os lobisomens aos cânions, as crianças-duendes que, não à toa, têm ares de mangá e aparecem na Liberdade. A cigana/lagarta em um canto mais esquecido da cidade, pois é assim que muitas vezes a comunidade trans é tratada. Os cenários cada vez mais ao sul, representando a queda da Alice. A Patagônia como lar dos iétis, pois é isso que o nome do local significa: pé grande. É preciso estudar, fazer encaixar, ter um motivo.

A escrita não pode ser aleatória. O leitor às vezes nem percebe, mas existe um casamento perfeito entre toda a escolha do autor e a imersão que ele quer para a experiência. Tudo tem que fazer sentido, não pode ser aleatório. O leitor sente Alice caindo no buraco até chegar ao ninho de sua grande inimiga.

André L. Nascimento (Foto: Reprodução/Instagram)

Da mesma forma que o clássico é caracterizado, o seu livro também nos apresenta personagens bastante enigmáticos, tais como a própria personalidade da Alice e de sua avó que a intriga sobre os segredos do novo mundo que aguarda. Você criou uma nova narrativa sem tirar a essência da história verdadeira. Como foi essa parte concepcional de cada personagem e a inspiração para o contexto? Quais suas inspirações e estudos para produzir o desenvolvimento da história?

As inspirações vêm dos muitos livros de fantasia que devorei durante a infância. Uma mescla entre folclores europeus e nacionais. Eu não queria que fosse só mais uma releitura de Alice, já existem várias. Quase sempre romances ou ainda a vibe do nonsense. Eu queria doses gordas de susto, medo e mistério, quebrar a cabeça do leitor. O que isso significa? Por que esses monstros querem matá-la? Por que odeiam tanto o livro? Quem é esse tal coelho?

Então, o processo não é só jogar uma criatura fantástica na história para gerar estupefação, tem que ter motivo, como já disse. Cada personagem ia sendo concebida para fazer uma alusão à galera já conhecida (Chapeleiro, Coelho Branco, Lagarta, Rainha Branca e Vermelha, Tweedledum e Tweedledee…), além de minhas próprias criaturas. Era preciso que não ficasse óbvio demais, mas que não perdesse a essência; é um trabalho de fiandeira, e é difícil. Casar as falas, gestos, motivo para estar na história e servir para a missão da nossa Alice.

Foi preciso estudar o porquê de cada personagem e casar suas citações famosas com o próximo passo que eu queria que a Alice brasileira desse na construção de sua autoestima destruída pela mãe, afinal, ela precisava se tornar uma lutadora.

André L. Nascimento (Foto: Reprodução/Instagram)

Uma das inúmeras alusões que a história nos retrata em seu livro, é a questão da depressão, onde após perder sua avó, que era o seu porto seguro, Alice passa a viver com sua mãe e acaba perdendo o desejo de viver e também de deixar a companhia de suas alegrias e amigos. Quais são os principais cuidados que devemos ter ao abordar contextos tão delicados como esses na literatura? Acredita que possa ajudar pessoas através dos seus livros?

Eu tenho pavor de personagem perfeita. Para mim, é pedir para jogar o livro fora. Nós somos humanos, temos desafios todos os dias, não é fácil ser brasileiro (ahahhahaha). Pela minha própria história e por trabalhar com adolescentes eu vejo o quanto gritam por socorro, por um pedido de “ei, senta aqui, me escuta!”. Por trás de um gorro colocado e um fone de ouvido atochado, sempre tem uma história. E se eu fui salvo com os livros que lia, então, eu posso fazer o mesmo por outros. É preciso cuidado para não romantizar.

Os cortes, a vontade de morrer, os dias escuros, a tristeza profunda podem bater à sua porta a qualquer momento e quero que meus leitores sintam que não estão sozinhos, outros já passaram pelo que eles passam, eu passei. Havia dias que eu odiava ser eu, não queria mais estar ali, em lugar nenhum.

Mas é preciso mostrar que isso tem solução, existem maneiras de pedir socorro, mostrar sinais. Se não em sua casa, em outros locais. Sempre vai ter aquela avó ou tio (eu!!!) para dar aquele conselho da hora, te ouvir, segurar sua mão e dizer “Se não estão enxergando o quanto você é demais, calma, você só está em frente aos olhos errados. Calma, tem gente bacana vindo por aí e eles vão te amar. Não tira deles o direito de ver a pessoa incrível que você é.”

André L. Nascimento (Foto: Reprodução/Instagram)

Durante a história, você nos apresenta uma narrativa onde Alice tem seu livro roubado por um duende e ao correr, acaba esbarrando em um homem alto e musculoso, e que logo se torna o seu amor à primeira vista. Essa narrativa foi baseada em um contexto real?

Jamais, Deus me livre! Ahahhah. Gosto de deixar bem claro que odeio clichê e essa história de macho lindo, perfeito, alto, louro, musculoso é história da carochinha; fujam! – André, então, por que fez isso? Por que era o que Alice sonhava. Um conto de fadas meloso, babaca, mas que estava escondido por baixo da casca grossa que ela imprimia. A garota de SP que cresceu mais que um bambu (o que não é coincidência) odiava as meninas da escola que sonhavam com isso, mas no fundo, ela só queria ser uma menininha frágil, não estar passando pelo bullying e sofrimentos que vivia. Desejou tanto aquilo, que acabou acontecendo, só não foi como ela queria.

Com um olhar geral de sua obra, qual é a principal mensagem que gostaria de passar através do seu livro para o público?

Vai ficar tudo bem! Espera, sempre vai. A vida é áspera, machuca; os desafios, muitas vezes, começam em casa. As paredes são nossas únicas amigas, mas tenha calma. Respira fundo e enche seu coração de sonhos, eles vão ser o combustível. Corre atrás, estuda, pede ajuda, você é forte, especial e bom em algo, só falta descobrir.

Encontre sua verdadeira Alice, deixe a metamorfose acontecer. Existe tanta força dentro de você, só falta acreditar. Os dias cheios de riso vão chegar e, no fim, você vai descobrir que seu único inimigo, o único que pode te derrubar não são os outros, é você. Então, escute apenas o seu melhor. Ele vai ser seu herói. Ah, e claro, o mais importante: cuidado ao seguir homens com tatuagem de coelhos e olhos escondidos!

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Com Andrezza Barros e Regina Soares

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